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POR UMA CRÍTICA E TRADUÇÃO DO EXÍLIO



Tarsilla Couto de Brito[1]

A primeira pergunta que, imagino, se impõe às pessoas que vieram a este encontro de "Crítica e Tradução do Exílio" dirige-se ao sentido mesmo do substantivo que nomeia o grupo - nós temos por hábito de ironia chamar-nos "exiladas". Pois bem, esta fala de abertura tem como objetivo contar a história de formação desse grupo e, simultaneamente, desenhar os sentidos teóricos que a palavra exílio vem desenvolvendo para nós.
Eu poderia começar essa "Carta de princípios" com uma etimologia do termo ou contando uma história exemplar e comovente de algum exilado, afinal, há uma aura de mistério em torno da tanto condição quanto da figura. O exilado parece guardar um tipo de conhecimento privilegiado a respeito do mundo. A determinação anti-essencialista do grupo, contudo, denunciaria rapidamente essa estratégia como uma falácia argumentativa.
Com isso, elimina-se desde já dois sentidos relativamente conhecidos e sedutores para o significante "exílio": 1) o sentido do banimento territorial como punição política ou religiosa, tal qual visto e lido nas biografias de Ovídio e de Dante, nas narrativas míticas de Adão e Eva, do povo hebreu, de Édipo e de Antígona; 2) exclui-se ainda o sentido romântico de exilado, bastante arraigado no senso comum, como um marginal da sociedade, isolado graças a uma sensibilidade acentuada que tornariam insuportáveis os costumes alienados da vida comum, como pode ser encontrado nas figuras do "Caminhante solitário" de Rousseau, dos poetas malditos da geração de Baudelaire, em especial na negação da poesia feita por Rimbaud ao isolar-se na Abissínia (atual Iêmen) para vender armas e café.
O sentido do exílio para este grupo não nasceu pronto e não está pronto; vem se desenvolvendo com as leituras compartilhadas que realizamos desde o momento em que assim nos entendemos. Tudo começou em abril de 2014, em Macapá, quando o Centro de Seleção da UFG nos reuniu – as professoras Alice Araújo (UNB), Glória Magalhães (UNB), Silvana Matias Freire (CEPAE/UFG) e a mim, Tarsilla Couto de Brito (UFG) – para compormos bancas de avaliação de um concurso público para professores do Estado do Amapá. Ali, às margens do rio Amazonas, conversando sobre literatura, viagem, tradução, ensino (entre outras coisas), identificamos uma série de afinidades teóricas que nos estimularam a conhecer o trabalho intelectual umas das outras.
Definimos assim que o I Encontro Internacional e VII Encontro Nacional do GELCO (Grupo de Estudos de Linguagem do Centro-Oeste) seria o primeiro momento favorável para uma partilha intelectual mais sistematizada. Quatro meses depois estávamos na cidade de Goiás para uma sessão de comunicações mediada pela querida professora Albertina Vicentini (Programa de pós-graduação em História da UFG) que, generosa e experiente interlocutora, contribuiu imensamente para nossos trabalhos, criticando, comparando e indicando leituras complementares. Ficou claro naquela mesa que, apesar das diferenças entre nossas áreas de atuação – Alice pesquisando e praticando poéticas da tradução, Glória desenvolvendo uma arte do teatro que efetivamente materialize o texto no corpo, Silvana pensando sobre o estranhamento e suas implicações psicanalíticas e eu iniciando uma reflexão que tenta resgatar os problemas de representação como instância de leitura de narrativas do limbo a que foi relegado pelo formalismo radical –, essas diferenças produziam contrapontos umas para as outras, incômodos e questões que surgiam na medida em que debatíamos nossos trabalhos, questionando nossos pressupostos e expondo subentendidos que nos traíam.
Se, por um lado, todas nós nos encontramos na negação da metafísica, preferindo observar as mudanças e instabilidades dos sentidos históricos, literários e discursivos a se prender à estabilidade ilusória da História nos moldes da narrativa oficial e identitária, da Literatura apresentada como uma essência dada pelo próprio texto e da Língua como um sistema fechado e transparente; nos distanciamos, por outro, no que diz respeito à composição de corpus: Alice e Glória trabalham mais frequentemente com textos literários estrangeiros da contemporaneidade, radicalizando a experiência da alteridade pela tradução e pela performance, interferindo de forma direta nos sistemas literários de duas culturas ao mesmo tempo; Silvana e eu, de outro modo, revisitamos o cânone para dele extrair experiências outras de temporalidade e de intersubjetividade, o que também produz, por sua vez, novas tensões para as tradições que forçosamente se aproximam e se desestabilizam pelo contato, pela iminência do que há de estranho, de contraditório, de resistência e de opacidade nos signos articulados para a apresentação do outro.
Nas diferenças descobrimos o princípio da comparação como forma de organização das leituras e de produção do conhecimento. Darei apenas um exemplo disso, correndo o risco de ser julgada como narcisista, mas prefiro que vocês leiam apenas como uma consequência produtiva desse encontro: eu nunca mais consegui pensar crítica literária de outra nacionalidade sem levar em consideração o trabalho de tradução que o introduziu no meu horizonte de leitura. E tendo isso em mente, acabei escrevendo um artigo que questiona os limites das interpretação de Coração das trevas de Conrad feitas no Brasil até 2013; além disso, tenho agora duas orientandas que trabalham com tradução na relação direta que o tema e os problemas da atividade tradutora em si são implicados na pesquisa sobre poéticas da narrativa. Tudo isso para dizer que depois do Encontro do GELCO, percebemos as reais possibilidades de nosso grupo, entendendo que estava na hora de lançar-mo-nos a um novo desafio: o da constituição de uma bibliografia de base. Por isso, o texto "Reflexões sobre o exílio" (ensaio publicado em coletânea homônima pela Cia das Letras com tradução de Pedro Maia Soares em 2003) se nos apresentou como uma primeira leitura importante e dele pegamos de empréstimo a imagem do exilado para nossa proposta.
Neste ensaio, Said demonstra uma séria preocupação com não banalizar o termo, pois sente-se solidário à situação real e concreta do exilado, em especial daqueles que se viram obrigados a emigrar pelas guerras que desolaram seus países de origem – tal preocupação revela-se bastante atual no desespero e na miséria da fuga de milhares de sírios para a Europa. Parece haver nessa perspectiva uma dimensão trágica irrepresentável na situação do exilado do século XX. Isso não impede, no entanto, que Said reconheça o que há de representativo na condição do exilado, ao ponto de transformar essa figura em um tropo da experiência. Mas não de qualquer experiência. Passo, assim, a uma descrição das características dessa experiência do exílio e, paralelamente, indico como nos apropriamos dessa metáfora para a imagem-síntese do grupo.
A primeira afirmação de Said sobre o exílio diz de seu caráter "irremediavelmente secular e insuportavelmente histórico", "produzido por seres humanos para seres humanos" (SAID, 2003, p. 47). O livro Humanismo e crítica democrática (2002) ajuda a entender os advérbios de modo empregados aqui para dar ênfase a dois princípios fundamentais da escolha metodológica do autor, qual seja, a filologia humanista. A despeito de todas as críticas que o Humanismo sofreu no século XX, Said insiste na necessidade de afirmação do sujeito (capaz de lembrar e capaz de criar) diante da tarefa de desconstruir as Grandes Narrativas como aquela que ele mesmo empreende em seu Orientalismo (1979).  Assim, o exílio é uma condição que só pode ser compreendida na sua dimensão humana, rejeitando-se qualquer chave que conduza a uma transcendência, seja pelas vias da religião, seja pelas vias do irracional. A força do advérbio de modo nesse sintagma, contudo, aprofunda a necessidade da compreensão sob a lógica das relações possíveis entre os seres humanos. De um lado, a secularização foi um processo que colocou o homem como sujeito do conhecimento; por outro, o exílio é politicamente a explicitação de que esse processo de racionalização da vida não trouxe junto consigo uma garantia de solidariedade. Vale destacar a ressalva de Said para o fato de que a condição de exilado revela-se sempre ciumenta e oferece o risco de conduzir à xenofobia nacionalista. Não se trata exatamente, como se pode ver, de um signo conciliador.
O "insuportavelmente histórico", por sua vez, pode ser interpretado como um desdobramento da secularização: é preciso entender para produzir novas narrativas, é preciso narrar para construir novos sentidos. Não devem ser subestimados os lugares que o romance e a ideia de cânone ocupam no pensamento de Said. Pela narrativa se cultiva a memória e o entendimento e, recordando a nuance de deslocamento que o termo exílio comporta em Cultura e Imperialismo (1993), o crítico demonstra como a narrativa tem o poder de associar tempo e espaço. Narrar define-se, no debate sobre cultura, como uma das formas mais clássicas de cultivo - lembro aqui outros dois textos referenciais para esse debate, para além do já citado livro de Said: Cultura e Anarquia, de Mathew Arnold (1860) e Palavras-chave, de Raymond Williams (1976). Narrar é cultivar a memória de uma comunidade no solo que a alimenta materialmente. Esta era a função da Odisséia e da Ilíada para o povo grego daquele feudalismo arcaico organizado em torno das arethés; este é o sentido das narrativas de Tolamãn, reunidas para publicação na década de 80 do século passado por iniciativa do próprio desâna, sob o título de Antes o mundo não existia. No solo da cultura narrativa, diferentes temporalidades entrelaçam-se no destino comum de um território e de diferentes línguas; nele também ocorrem os conflitos que podem levar à fratura e ao trauma do exílio.
A centralidade dos gêneros literários na visão de cultura de Said explicita que não bastam apenas as grande narrativas, aquelas estruturadas sobre o discurso de autoridade, para compreender essa experiência do exílio. Importa mais o compósito que diferentes formas estéticas podem chegar a formar a partir da noção de espacialidade, presente na coexistência, na justaposição, na constelação de experiências – lembrando uma das metáforas preferidas de Walter Benjamin[2] para afirmação de uma tese não teleológica da história. Da ruptura com o tempo da tradição e com o espaço onde se consolidaram os costumes de uma comunidade, surge uma condição fundamental para o empréstimo do signo do exílio para uma perspectiva alternativa de produção do conhecimento: "A maioria das pessoas tem consciência de uma cultura, um cenário, um país; os exilados têm consciência de pelo menos dois de cada um desses aspectos e essa pluralidade de visão dá origem a uma consciência de dimensões simultâneas" (SAID, 2003, p. 59). Novas temporalidades emergem do contato de fenômenos nunca antes avizinhados.  As narrativas que terminam por formar o chamado cânone ainda precisam ser lidas, secularmente, com as lentes do desencantamento, como registros justapostos da diversidade de subjetividades que se perdem e se desorientam a partir do momento em que uma seqüência de conflitos deflagra essa experiência traumática, que é o deslocamento para fora da cultura em que se formou.
Ao percebermos esse ponto nevrálgico das reflexões de Said, voltamos nossa atenção para a formação de uma bibliografia que expandisse e problematizasse não apenas o exílio como outras imagens e considerações sobre esse lugar de contato entre línguas que exige a criação de outros sentidos. Assim, chegamos a Todorov: primeiro, à sua autobiografia traduzida para o português brasileiro como O homem desenraizado, mas cujas ideias sobre exílio seriam melhor representadas pela imagem de um "homem despaisado", uma vez que o sujeito enunciador desta narrativa afirma não pertencer inteiramente à Bulgária, seu país de origem, muito menos considera-se completamente francês, país onde vive desde os 24 anos. Trata-se do mesmo princípio anteriormente detectado em Said (duas línguas, duas culturas, duas sociedades que não se substituem, mas que coexistem, produzindo ora a necessidade da crítica, ora a da tradução): "A impressão dominante era a da incompatibilidade. [O domínio de] Minhas duas línguas, meus dois discursos se pareciam muito, de certa forma; cada um poderia satisfazer à totalidade de minha experiência e nenhum era claramente submisso ao outro" (TODOROV, 1999, p. 21). Tal constatação também conduz Todorov à valorização do exílio sem desconsiderar o que há nele de inquietação, angústia e medo: "Em Sófia era a vida na França que me parecia como sonho e eu sentia essa impossibilidade de voltar atrás que experimentamos ao acordar [de um sonho] (op. cit., p. 21)".
É interessante acompanhar cronologicamente a produção bibliográfica de Todorov. Em sua linha do tempo deflagra-se, em uma escala reduzida, a história da teoria e da crítica no século XX. De um formalismo radical que, como o ouriço de Schlegel, rejeitava qualquer contato com a realidade ou referência ao mundo empírico, aos debates culturais preocupados com o papel do literário na vida social contemporânea, o trabalho intelectual de Todorov se nos revelou uma fonte privilegiada de pesquisa e de compreensão de nosso tempo. O marco dessa trajetória tem sido comumente apontado na publicação de A conquista da América em 1983, mas minha hipótese de pesquisa indica um livro anterior, ainda não traduzido para o português, chamado Mikhail Bakhtine, le principe dialogique de 1980. O que sustenta minha hipótese: Todorov precisou, antes, conhecer um lingüista que compartilhasse da mesma concepção de linguagem como um sistema opaco, do signo como uma arena de conflitos e do mesmo reconhecimento da importância do literário para o mundo da cultura. A partir desse encontro, ele pôde tanto refazer sua concepção de literatura quanto da de cultura e, de posse dessa renovação conceitual, realizar sua análise do encontro intercultural mais radical, porque mais traumático e letal, que a história moderna nos relatou: o da chegada de Colombo na América.
Uma das primeiras críticas de Todorov a Colombo condena uma hermenêutica que tem como princípio "tomar desejos por realidade". Acredito que se trata de uma advertência que ainda hoje devemos fazer aos nossos futuros pesquisadores:

Por exemplo, durante toda a primeira travessia (Colombo leva mais de um mês para ir das Canárias à Guanaani, a primeira ilha do Caribe que encontra), ele procura indícios de terra. E, evidentemente, encontra tais indícios, logo, uma semana após sua partida. "Começamos a ver numerosos tufos de ervas muito verdes que pareciam [...] ter se desligado da terra há pouco tempo" [...]. Vieram à nau capitânea dois albatrozes [...], o que foi um sinal de estar próxima a terra. [...]. Todos os dias Colombo vê sinais e, no entanto, sabemos hoje que os sinais mentiam [...], já que a terra só foi atingida [...] mais de 20 dias depois. (TODOROV, 2010, p. 27-28).

A análise de Todorov chega à conclusão de que o maior protagonista da conquista da América só obteve sucesso em sua empresa porque sua arte interpretativa era surda aos sinais que não lhe interessavam, viessem eles da natureza selvagem e exótica ou dos nativos. Em outras palavras, para usar uma expressão que Todorov aprendeu com Bakhtin, sua concepção de linguagem era realista e monológica. Por oposição, Todorov demonstra valorizar uma concepção dialógica, não apenas no âmbito da análise linguística, mas também na esfera da própria cultura. Para este homem despaisado, o dialogismo é intercultural e parte constitutiva de toda narrativa, esteja ela preocupada com o Outro, como tem sido recorrente na literatura contemporânea, ou o ignore, como nos relatos de viagem de Colombo.  
Assim como Said, Todorov destaca a importância de todo tipo de registro escrito para seu projeto maior de diálogo entre diferentes culturas. Vemos, com isso, o conceito de exílio expandir-se: trata-se, pois, de um exílio que reintroduz a crítica como uma compreensão criadora, ou seja, como tradução. O outro pode estar no passado do cânone ou no signo do diferente que se instala ao meu lado espacialmente, mas isso não significa que eu saberei mais do outro representado, como efetivamente sabemos pouco dos povos autóctones com que Colombo travou contato. Importa, de modo diferente, que eu saberei mais sobre o "eu dialógico" que intentou a interlocução.
Lendo os romances de Conrad, que investiu esteticamente em representações do exílio, Said observa que nessa condição, o sujeito organiza sua vida em torno da descontinuidade da experiência do outro que é constitutiva da alteridade (SAID, 2003, p. 52). Nossa proposta parte do mesmo princípio: assim como o autor de Coração das trevas transformou o medo neurótico do exilado em personagens e narradores que não medem esforços para se comunicar com o outro, a despeito de quanta consciência tenham da limitação radical imposta pela opacidade da linguagem, pelas mesmas razões, pela mesma concepção de linguagem, nós adotamos a metáfora do exílio para dar orientação ética e acabamento estético à ansiedade gerada pelo não-saber, não ter certezas, não poder contar mais com as grandes referências da tradição. "Grande parte da vida de um exilado é ocupada em compensar a perda desorientadora", nos diz Said (SAID, 2003, p. 54), indicando para nós a possibilidade de transformar a experiência discursiva do literário em algo que não morra com o princípio da autonomia, do autotelismo, da universalidade do cânone, mas que renasça como um exercício de crítica e de tradução, de distanciamento e de aproximação de outras línguas, de outras narrativas, de outros cânones, de outras culturas.
Essa possibilidade de não sucumbir aos princípios essencialistas e autoritários da modernidade não significa uma opção polarizada pela filosofia pós-moderna. A imagem do exilado nos define exatamente pelo que Said nela identificou como recusa ao pertencimento: "E logo adiante da fronteira", afirma, "entre nós e os outros, está o perigoso território do não pertencer" (SAID, 2003, p. 50). Nesse território, o exilado deve se orientar tanto pelo distanciamento quanto pelo contato, fundamentos do que chamamos aqui de crítica e de tradução. Olhar tudo com o distanciamento do exílio, pois "há mérito considerável em observar as discrepâncias entre os vários conceitos e ideias e o que eles produzem de fato" diz Said (2003, p. 58) e, ao mesmo tempo, como contraponto ao distanciamento, ao olhar que compara e provoca crises e críticas, a aproximação ameaçadora que "atravessa fronteiras, rompe fronteiras do pensamento e da experiência" (op. cit. p. 58), criando novas categorias num processo dialógico de troca inventiva, que é próprio da concepção de tradução por nós adotada.
Said não fala do exílio, portanto, como um lugar privilegiado, e nem nosso grupo poderia fazê-lo, posto que nos aproximaria da figura do gênio romântico ou nos conduziria a uma fetichização do conceito. Trata-se antes de uma "alternativa às instituições de massa que dominam a vida moderna" (SAID, 2003, p. 57). O grupo das exiladas aproveita-se do termo como um tropo para a alternativa aos termos propostos por cada uma das trincheiras que travam a disputa pelo domínio do conhecimento – de uma lado, rejeitamos as grandes narrativas como fonte eterna de saber, investigando nos modos de representação as contradições discursivas que permitem sentidos diferentes para a tradição; de outro, rejeitamos a ideia de fim da história e de fim da capacidade criadora do sujeito, afirmando a poética como um valor ético e estético. A poética do exílio se realiza indefinidamente nesse movimento conflituoso, instável e descentralizador que a tradução traz para a crítica e que a crítica traz para a tradução em um contexto em que a ideia de cultura tornou-se um conceito-problema. Nosso foco, de um modo geral é estudar as formas estéticas da cultura como uma zona privilegiada do contato entre línguas. O que nos diferencia passa pelo modo como interrogamos esse contato: pelo princípio dialógico do teatro e da performance, pelo estranhamento, pela atividade tradutora, pelos problemas de representação do outro, pelas contradições da tradição e do cânone, pelas narrativas de resistência e de emancipação de ex-colônias –esses são os problemas das exiladas.
Com isso, acreditamos atender a um compromisso exigido pelo próprio Said para aqueles que pretendem tomar o exílio como imagem sem banalizá-lo: a de cultivar uma subjetividade escrupulosa, compromissada com a linguagem, para que ela não se torne mais um jargão de crítica ou de tradução e também compromissada com a cultura do literário, para que ela não se transforme em mercadoria, ou seja, em instrumento de homogeneização.
Definida provisoriamente nossa concepção de exílio, esperamos que as pesquisas do grupo continuem produzindo debates profícuos dentro das áreas da crítica literária e da tradução, debates esses que extrapolem os limites de nosso grupo, de maneira que se estendam aos ambientes acadêmicos dos quais fazemos parte e contribuam para a revisão das práticas cotidianas de ensino de literatura e tradução dentro e fora das universidades. Nesse sentido, o I Encontro de Crítica e Tradução do Exílio, que aconteceu nos dias 28 e 29 de janeiro deste ano na Faculdade de Letras da UFG, foi o primeiro passo dado rumo à interação entre o Grupo e a comunidade acadêmica. Através desse primeiro Encontro, que proporcionou o contato entre o Grupo e demais professores-pesquisadores,  nossos orientandos e os alunos dos diferentes cursos de licenciatura e bacharelado da Faculdade de Letras, pudemos fazer um balanço das discussões empreendidas até o momento e traçar novos objetivos a serem alcançados ao longo deste ano. Convidamos, desde já, o leitor interessado no assunto a manter-se informado em nosso blog, pois, através desse espaço virtual, divulgaremos, periodicamente, resumos, textos, resenhas, artigos e as datas e locais dos próximos Encontros. Sejam todos bem-vindos!

BIBLIOGRAFIA

BENJAMIN, Walter. Origem do Drama Barroco Alemão. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984.

SAID, Edward W. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Trad.: Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

_______. Humanismo e crítica democrática. Trad.: Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

_______. Cultura e imperialismo. Trad.: Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

TODOROV, Tzvetan. O homem desenraizado. São Paulo: Record, 1999.


_______. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 2010.


[1] Doutora em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), atua como docente e pesquisadora na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás (UFG). Co-fundadora do Grupo de Crítica e Tradução do Exílio.
[2] Para Benjamin, dois fenômenos cronologicamente distantes, sejam eles estéticos ou não, quando colocados em cotejo iluminam-se reciprocamente, revelando certa afinidade interna entre seus teores factuais. Essa justaposição constituiria a “constelação”, verdade possível da história, uma imagem da história que lhes é interna. Diferentemente de uma filosofia cartesiana de representação, que aplica sobre os fenômenos um quadro conceitual que está previamente dado, o trabalho interpretativo do crítico seria de fazer uma outra narrativa emergir das ruínas da História de cada obra para, a partir daí, extrair e trabalhar suas contradições, aquelas que escapam a qualquer padronização, colocando-as em contraste com outros elementos e reorganizando-os em uma nova constelação. (BENJAMIN, 1984, p. 51). É assim que Benjamin quebra as noções de anterioridade, de simultaneidade e de posterioridade na reflexão de uma outra historicidade, menos cronológica e mais cronotópica.